As Fronteiras do Cosmopolitismo Maçônico

As Fronteiras do Cosmopolitismo Maçônico

Revolução e Raça na Maçonaria Germano-Americana Pré-Guerra Civil

Ir. Andreas Önnerfors – Venerável Mestre (WM) da Quatuor Coronati Lodge 2076 – GLUI

Discurso de posse apresentado à Loja Quatuor Coronati nº 2076 em 14 de novembro de 2019. Publicado na ARS Quatuor Coronatorum nº 133 de 2021 pp. 13 – 24

Tradução e adaptação autorizadas: Ir. Marcos Vinicius Oliveira – Or. de Portugal*

Neste discurso inaugural, vou explorar um tópico que me acompanhou na última década, a saber, a história da franco-maçonaria alemã emigrada para os Estados Unidos no rescaldo da fracassada revolução dos Estados Alemães de 1848. [1]

Após as guerras napoleônicas, em 1815, estados europeus cada vez mais envolvidos em modos autoritários de governo, lentamente foram restaurando a monarquia como a principal forma de organização política. Mas os ideais de reforma liberal, juntamente com as crescentes desigualdades sociais, criaram uma pressão que nas décadas seguintes eclodiu em oposição feroz, agitação cívica e uma série de revoluções por toda a Europa. Quando uma dessas revoluções falhou, a de 1848 nos territórios alemães, um grande número de revolucionários democráticos emigrou para o que consideravam o paraíso da liberdade, os EUA. Muitos desses emigrantes eram maçons, mas quando confrontados com as realidades da maçonaria americana na época, seu idealismo foi seriamente frustrado. Isso se relacionava em particular com questões de exclusão racial e de uma cultura maçônica mais constitucionalista do que estavam acostumados na Alemanha. Alguns desses maçons alemães emigrados, recorreram às suas antigas (regulares e reconhecidas) Grandes Lojas e receberam patentes para estabelecer Lojas nos Estados Unidos. Visto da perspectiva dos EUA, essa foi uma intrusão ilegal do princípio de exclusividade da jurisdição territorial.

No entanto, neste artigo, não é minha principal preocupação essas questões de jurisdição maçônica interna – embora elas, em certo grau, expliquem a gravidade do conflito que se desenrolou. Para mim é muito mais interessante levantar a questão sobre as fronteiras do cosmopolitismo maçônico – o que significa que desde seu início, a maçonaria se estilizou e interpretou a si mesma como uma comunidade universal, tolerante e abrangente; indo além da religião, cultura, raça ou status social. Muitos textos fundamentais, como o discurso do Cavaleiro Ramsay, de 1738, delineiam um forte caráter de cidadania e filantropia globais. [2]

Muitas das práticas da maçonaria – como o uso precoce de certificados como passaportes que facilitam encontros fraternos e auxílio maçônico em todo o mundo – falam a mesma língua de uma irmandade unida através das barreiras culturais, sociais e religiosas “dispersa por todo o mundo”.

Entretanto, este caráter cosmopolita chegou no limite quando se tratava da inclusão de judeus ou homens de cor (sem falar da questão da exclusão de mulheres). Como veremos no caso dos franco- maçons alemães emigrados, essas tênues linhas causaram consideráveis conflitos.

Uma centelha de vida no Atlântico?

Em 2 de maio de 1851, a loja Pythagoras nº 1, no Brooklyn, foi consagrada pela Grande Loja de Hamburgo (GLH). Em sua primeira carta circular impressa para as “amadas lojas irmãs e irmãos de nossa união/federação”, a loja declarou que este novo passo em sua existência visava

não apenas promover uma união mais íntima de nossos irmãos alemães aqui com aqueles ali na velha pátria, mas particularmente para facilitar esta união mais íntima entre nossos irmãos alemães e americanos, a fim de promover o melhor da maçonaria em geral. [meu itálico]

também foi afirmado que a Loja

através da posição que agora tomamos pode se tornar a força de ligação do Arco unindo os pilares básicos, as Grandes Lojas neste e naquele lado do Atlântico, ou a cadeia de união, através da qual a centelha vivificante flui de um para o outro. [3]

As lojas maçônicas na pátria recém-adotada poderiam desempenhar um papel no sentido de fornecer aos imigrantes alemães respeito e amor por seu novo país. À primeira vista, isso parece um relato positivo do estabelecimento da sociabilidade organizada na era dos grandes movimentos de migração transatlântica da Europa para a América do Norte e referenciando a inauguração do primeiro cabo transatlântico. Mas a história da Loja de Pitágoras nº 1 tem dimensões mais profundas que conduzem ao labirinto da auto-jurisdição maçônica, a dinâmica complexa e ambivalente de encontros transculturais e as realidades de uma sociedade racialmente segregada, em particular da América anterior à Guerra Civil. Os eventos que se desenrolaram em Nova York durante essas décadas oferecem uma visão através da qual os fenômenos mais gerais do período podem ser estudados, em particular a tensão intrigante entre o universalismo moral como propagado na Maçonaria do período e o particularismo das realidades sociais em ambos os lados do Atlântico.

Maçonaria em Nova York

Primeiro, precisamos localizar o estabelecimento das Lojas de emigrantes alemães no contexto mais amplo da Maçonaria em Nova York. Uma Grande Loja Provincial em Nova York foi fundada em 1781 pela Grande Loja Inglesa dos Antigos e três anos depois foi convertida em uma Grande Loja independente com autoridade territorial sobre o estado. [4]

Desde o início, porém, houve uma tensão entre as Lojas urbanas e as Lojas rurais (no interior do estado) por causa da enorme discrepância com relação aos números e, portanto, participação e proximidade com a tomada de decisões da Grande Loja, uma tensão que eventualmente também afetou as Lojas alemãs. Cismas recorrentes resultaram na formação de uma série de corpos maçônicos concorrentes. Entre 1822 e 1827 houve uma separação entre a City Grand Lodge e a Country Grand Lodge. E entre 1837 e 1859, nada menos do que três organizações separadas alegaram representar a Maçonaria de Nova York: St John’s Grand Lodge (1837-1850), Phillips Grand Lodge (1849-1858) e St John’s Grand Lodge (revivida, 1853-1859). Durante todo este período, a Grande Loja de Nova York oficialmente também foi representada por um quarto corpo, também chamado de Grande Loja de Willard. É no meio dessas turbulências organizacionais que a Loja Pitágoras, de língua alemã, foi fundada e eventualmente mudou de afiliação para a Grande Loja de Hamburgo (GLH).

É verdadeiramente alucinante ler sobre o seu estabelecimento, uma vez que indubitavelmente demonstra o caráter internacional da Maçonaria. Na década de 1790, uma Loja, Trinity Nº10 (posteriormente Nº12), foi constituída em Nova York e os maçons franceses estabeleceram uma loja eventualmente chamada L’Union Française Nº17. Ambas as lojas atraíram membros franceses que escaparam do conflituoso Caribe nos primeiros anos do século XIX, o que destaca a importância crucial dos vínculos caribenhos no início da história da Maçonaria nos Estados Unidos. E quando, após as guerras napoleônicas, a imigração alemã aumentou, vários imigrantes se juntaram a Trinity Nº10, finalmente trabalhando inteiramente em alemão. Isso, por sua vez, estimulou o estabelecimento original da primeira loja alemã, a German Union nº322 (posteriormente nº54) em 1819. Membros da L’Union Française e da German Union uniram-se para formar uma terceira Loja alemã, Pitágoras nº86, consagrada formalmente em abril de 1841 pela Grande Loja de Nova York.

As ligações entre essas quatro lojas eram intensas; Pythagoras e L’Union Française até assinaram um acordo de mútuo reconhecimento. Pythagoras trabalhou com uma tradução alemã do ritual francês, originado do Grand Orient de France (GODF) e não da Grande Loja de Nova York. [5] No total, mais de trinta lojas de língua alemã foram fundadas em Nova York ao longo do século XIX.

Fig 1: acordo de mútuo reconhecimento entre as Lojas Pythagoras e L’Union Franceise, 1841

O crescimento da maçonaria estrangeira em Nova York também deve ser entendido no contexto de sentimentos antimaçônicos na sociedade americana, começando com o chamado caso Morgan em 1826, o desaparecimento de um tipógrafo no interior do estado de Nova York que publicou exposições de Rituais maçônicos. Dois anos depois, o Partido Antimaçônico foi estabelecido, reunindo-se durante a década subsequente contra a suposta corrupção causada por maçons em posições políticas e sociais de liderança. Aproveitando a estereotipização negativa da Maçonaria que já existia no discurso pós-revolucionário europeu na década de 1790 e nos primeiros anos de 1800 (também do outro lado do Atlântico), o Partido Antimaçônico danificou profundamente a imagem da Maçonaria como uma organização respeitável. O número de lojas no estado de Nova York diminuiu de 480 em 1825 para 79 em 1840 (fazendo com que se reorganizassem e renumerassem), e o número de membros no mesmo período diminuiu radicalmente de vinte mil para cinco mil. A imigração prometeu contrabalançar essa tendência negativa. Em um relato histórico posterior, sobre a história da Loja de Pythagoras Nº1 (datando de 1867), este período é caracterizado da seguinte maneira:

O rápido aumento da imigração trouxe irmãos instruídos e experientes para as costas americanas e o espírito da Maçonaria alemã exerceu uma influência crescente nas assembleias das lojas germano-americanas, que foram visitadas por esses refugiados e cansados da Europa [‘Europamüden’].[6]

Os primeiros anos de estabelecimento parecem ter sido prósperos. Muitos maçons proeminentes se juntaram, e o relacionamento com a Grande Loja de Nova York parece ter sido harmonioso. Por razões descritas em detalhes abaixo, a Loja em 1851 mudou sua afiliação para a Grande Loja de Hamburgo, quando foi renumerada como Nº1. Para complicar ainda mais as coisas, apenas alguns anos depois, em 1854, vários membros da loja se separaram da Nº1, e retomou a patente original da Grande Loja de Nova York (que nunca havia retirado). A partir de então, duas lojas com o nome de Pythagoras (nº86, a mais velha e nº1, a mais jovem) existiram em Nova York e no Brooklyn. Portanto, é vital distinguir entre essas duas lojas. A posição da Grande Loja de Hamburgo em Nova York foi fortalecida em 1853 pela constituição de uma loja-filha da Pythagoras Nº1, chamada Franklin Nº2, em Tremont. Em 1871, uma terceira loja foi fundada, Zeton Zum Licht Nº3 em Hoboken. Ainda não foi estabelecido quando essas três lojas pararam de funcionar exatamente, mas em 1884 apenas Pythagoras nº1 permaneceu e no início de 1900 elas haviam desaparecido completamente.

À luz do aumento dos esforços sociais através do Atlântico, a Pythagoras nº86 em 1845 começou a corresponder-se com as lojas alemãs. Os acontecimentos políticos na Alemanha, em que as facções mais liberais da burguesia tornaram-se cada vez mais afastadas das elites conservadoras dominantes, não deixaram os alemães do exílio intocados. Em muitos casos, foi esse desenvolvimento que causou a migração. A Alemanha ainda estava dividida em vários territórios independentes sob o governo de príncipes mais ou menos autocráticos. O desejo de unificação nacional irrompeu em uma série de lutas que finalmente levaram ao estabelecimento de um parlamento em Frankfurt. Mas quando a revolução democrática de 1848 falhou, ativistas políticos frustrados emigraram em grande número. Os Estados Unidos eram vistos como o Estado mais democrático, liberal e tolerante, e atraiu um grande número desses emigrantes alemães, que na literatura subsequente foram chamados de ‘Quarenta e Oitos’. Comentando sobre o desenvolvimento político de forma invulgarmente ousada, Pythagoras nº86 escreveu em 1849 em uma carta aberta:

Na velha pátria, agora mesmo uma nova vida quer se criar – a sociedade quer renascer e o trabalho é penoso. Essas ondas de choque são significativas para a história mundial e forçam alguns de nossos irmãos a partirem em uma viagem marítima para os mares do mundo![7]

Foi admitido que a Maçonaria abraçou um princípio de neutralidade política; no entanto, também era necessário “promover uma nova criação, visto que pertence aos homens sábios, como nossos grandes e imemoriais irmãos da América fizeram no final do século passado”. [8] Em outras palavras, em seu apoio às reformas democráticas em todo o Atlântico, eles se identificaram com os pais maçônicos fundadores dos EUA, 1848 era para ser comparado com 1776. No entanto, essa identificação positiva seria em breve radicalmente testada.

Visão geral sobre o estabelecimento de Lojas:

  • 1841 – 1851: Loja Pythagoras Nº86 na Grande Loja de Nova York em 1851;
  • 1854: Loja Pythagoras Nº1 na Grande Loja de Hamburgo;
  • 1854: uma divisão da Pythagoras Nº1 leva ao restabelecimento da Nº86 para a Grande Loja de Nova York;
  • 1854 – (1884/1902): Pythagoras Nº1 na Grande Loja de Hamburgo;
  • 1853: Franklin Nº2 (Grande Loja de Hamburgo) estabelecido em Tremont em 1853;
  • 1871: Zeton zum Licht Nº3 (Grande Loja de Hamburgo) estabelecida em Hoboken;
  • 1854 – 1993: Pythagoras Nº86 na Grande Loja de Nova York, unido com Trinity Nº12 em 1993.

Território e autoridade: a divisão com a Grande Loja de Nova York

Não há dúvida de que os maçons alemães que chegaram aos Estados Unidos durante a década de 1840 pertenciam a um grupo com consciência política, em muitos casos deixando a Alemanha devido a profundas frustrações em relação ao ritmo lento do desenvolvimento social e democrático. No entanto, quando esses homens perceberam que na Grande Loja americana à qual pertenciam havia o que consideravam como “práticas não democráticas”, eles decidiram com grande autoconfiança se retirarem e fundarem suas próprias lojas. Consequentemente, eles solicitaram uma autorização da Grande Loja de Hamburgo, na época indiscutivelmente uma das Grandes Lojas mais progressistas do mundo. Localizada em Hamburgo, a chamada Cidade Livre Hanseática Alemã e um dos maiores centros globais de comércio marítimo no Atlântico Norte, a Grande Loja de Hamburgo desenvolveu sua própria cultura de liberalismo e tolerância.[9]

É famosa pelo desenvolvimento do Ritual de Schröder, um ritual reformado no espírito do Emulação inglês e do Webb americano e potencialmente aberto para a adesão de várias religiões, enquanto rejeita ferozmente qualquer maçonaria de alto grau. A pesquisa e estudos maçônicos atingiu um auge inicial com o estabelecimento do chamado Engbund de Schröder – uma forma de graus acadêmicos mais elevados, o primeiro corpo de pesquisa organizado na Maçonaria e, portanto, um importante precursor de nossa Loja QC Nº2076 e todas as outras lojas de pesquisa subsequentes. Em 1841, o primeiro membro judeu foi admitido em uma loja pertencente a Grande Loja de Hamburgo. Datando sua história organizacional desde 1738, a Grande Loja de Hamburgo conscientemente se autodenominou como um corpo maçônico perfeitamente independente e internacional, e contribuiu para a disseminação de sua marca particular de Maçonaria “humanitária” em muitas partes da Europa e do globo, incluindo as Américas.

Portanto, quando os maçons alemães em Nova York recorreram a Grande Loja de Hamburgo para solicitar uma Carta Patente, eles o fizeram por motivos específicos. O que tinha acontecido? Tensões dentro da Maçonaria em Nova York se manifestaram em conflitos relacionados aos direitos de voto na assembleia geral da Grande Loja de Nova York. Os ex-mestres das lojas receberam o direito de votar na Assembleia Geral; aqueles que residiam na área da cidade de Nova York podiam mais facilmente comparecer às assembleias trimestrais e votar, enquanto os Mestres anteriores de lojas do interior do estado não podiam, criando assim um desequilíbrio marcante em favor das lojas em Nova York e Brooklyn. As lojas do interior reclamaram que essas práticas de votação os prejudicaram, e várias lojas metropolitanas (incluindo Pythagoras nº86) apoiaram esta posição. Como afirmado anteriormente, durante as décadas de 1830 e 1840, esses conflitos resultaram na divisão da Grande Loja de Nova York em organizações concorrentes. Na correspondência solicitando afiliação a Grande Loja de Hamburgo, a Pythagoras enfatizou seu objetivo de “se libertar completamente das maquinações das lojas americanas, às quais não poderia se inscrever, e como uma loja alemã [destinada] a trabalhar pelo fortalecimento do seu caráter alemão [Deutschtum] e relações com a velha pátria”. [10] Por trás dessa linguagem patriótica, as maiores frustrações causadas pelo exílio são perceptíveis, particularmente as expectativas sociopolíticas insatisfeitas e as complexidades da formação da identidade política germano-americana. No pedido de filiação à Grande Loja de Hamburgo, havia a insinuação de dúvidas sobre as práticas de governança maçônica americana que iam além das questões de votação da Grande Loja de Nova York.

“Abra a porta para o desgoverno e a anarquia”: O conflito sobre a jurisdição territorial

Na prática, esse ideal de emigrado alemão de uma irmandade maçônica sem fronteiras colidiu com uma prática maçônica burocrática de longa data nos Estados Unidos – o princípio da jurisdição territorial exclusiva. Essa prática permitia que apenas uma Grande Loja existisse em qualquer estado ou território federal, e somente aquela Grande Loja reconhecida poderia fundar lojas dentro de sua jurisdição. Essa interpretação rígida da jurisdição maçônica era desconhecida na Alemanha, que só se tornou um estado nacional unificado em 1871. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, entretanto, a posição oficial da Grande Loja de Nova York não era apologética. De acordo com seu Grão-Mestre Milnor, a Grande Loja de Hamburgo erroneamente pensava que “a lei, como eles a entendiam, simplesmente proibia a existência de duas Grandes Lojas dentro dos limites do Estado, mas não proibia o exercício de jurisdição estrangeira”. [11]

Toda essa controvérsia gerou um debate acirrado sobre o princípio geral da jurisdição territorial exclusiva e se ele tinha algum fundamento nos princípios históricos da Maçonaria. Também fez com que a Loja de Pythagoras nº1 se dividisse em duas: um grupo acreditando que era melhor retornar à sua antiga lealdade e outra perseguindo uma trajetória mais controversa. A chegada de uma geração mais radical e revolucionária de emigrados trouxe consigo novos conceitos da Maçonaria, mas também uma consciência política que não podia ser conciliada com a realidade americana. Este espírito de crítica e oposição que os “Quarenta e Oito” transportaram através do Atlântico misturou visões cosmopolitas com uma ‘missão alemã’ particular na América. Infundido nisso estava uma questão muito mais contenciosa – segregação racial, tanto dentro da Maçonaria americana quanto na sociedade americana em geral, uma área de profunda discordância no período que antecedeu a Guerra Civil.

A segregação racial como uma causa de conflitos transatlânticos

Até 1855, as divisões entre a Maçonaria como praticada nas lojas de língua alemã e suas contrapartes americanas manifestaram-se como amplamente organizacionais. Mas subjacentes a essas disputas organizacionais estavam as diferenças na cultura política entre emigrados alemães sensibilizados democraticamente, que estavam preocupados com a participação na tomada de decisões e o “espírito” e “coração” da Maçonaria, e os maçons americanos mais legalistas para os quais a questão principal era obedecer as regras e regulamentos, e que foram acusados ​​por alguns alemães de formalismo. A atitude defensiva das Grandes Lojas americanas também foi desencadeada por um medo justificado de abrir a porta para a invasão de corpos maçônicos europeus e, assim, aumentar a confusão organizacional já existente, como a que ocorreu em Nova York, e aumentada pela formação de outros corpos maçônicos como como o REAA. Abaixo ou além dessas áreas de controvérsia, é possível discernir comentários sutis, e ocasionalmente abertos, relacionados à adaptação cultural e isolacionismo, duas estratégias dominantes de enfrentamento dos imigrantes europeus nos EUA.

Durante o final da década de 1850, entretanto, outra questão contenciosa do ardente conflito transatlântico emergiu: um profundo desacordo entre a Grande Loja de Hamburgo e a Grande Loja de Nova York a respeito da segregação racial na Maçonaria dos Estados Unidos. O episódio inteiro se desenrolou em uma interação intrincada entre lojas em Monróvia (Libéria), Hamburgo e Nova York. Um maçom alemão visitando Monróvia perguntou a Grande Loja de Hamburgo se a Grande Loja da Libéria era um corpo maçônico regular, uma vez que reivindicou a constituição de uma Grande Loja americana (Prince Hall). Para investigar a questão, a Grande Loja de Hamburgo disseminou uma longa circular para outras Grandes Lojas na Europa pedindo informações. Mas a carta também incluía uma declaração sobre a segregação racial e o preconceito na Maçonaria dos Estados Unidos, que era forte mesmo nos Estados não escravistas, observando que é “triste, mas é verdade que nossos irmãos americanos não se emanciparam desse preconceito”. [12]

A Grande Loja de Hamburgo fez referência a uma passagem nas publicações da Grande Loja de Nova York de 1855 chamando a admissão de pessoas de cor “uma monstruosidade a ser excluída da discussão”. [13]

Mas isso também se aplica a outras Grandes Lojas? Além disso, questionou a Grande Loja de Hamburgo, “também se recusar a reconhecer um grande número de lojas [. . .] e ainda recusar a admissão de membros das mesmas, simplesmente porque sua pele é um pouco mais escura?” [14]

Talvez o não reconhecimento da Prince Hall fosse, além disso, o resultado do princípio ultrapassado de jurisdição territorial exclusiva? Não sabemos se a Grande Loja de Hamburgo percebeu que sua circular provocaria reações veementes de suas contrapartes americanas, mas a volumosa troca transatlântica de cartas e declarações que se seguiu, bem como artigos e reportagens na imprensa maçônica americana e alemã, prova o quão controverso é o assunto de exclusão racial era. Além disso, essa disputa reflete profundas diferenças nacionais com relação à Maçonaria, tolerância e cultura política em geral. Em sua reunião anual em junho de 1859, a Grande Loja de Nova York lamentou que os “fracos descendentes de Hamburgo” estavam colocando em risco a harmonia maçônica, mantendo, como eram, uma “existência taciturna e um obstinado desafio às edições e resoluções solenes” da Grande Loja de Nova York e quase todas as outras Grandes Lojas nos EUA. [15] E pior ainda,

O corpo maçônico desses descendentes, do outro lado do Atlântico, está procurando vingar-se da fraternidade nos EUA, agindo de forma repreensível e se aliando ilegitimamente com outros, despertando preconceitos das Grandes Lojas da Europa contra nós. [16]

Entretanto, a Grande Loja de Nova York aparentemente não sabia que a Grande Loja de Hamburgo pertencia definitivamente à vanguarda da ala liberal e reformista da Maçonaria Alemã, defendendo a filiação judaica às lojas maçônicas e a descontinuação de práticas excludentes baseadas em quaisquer fatores de religião ou raça. Por sua vez, Johann Barthelmess, Mestre da Loja Pythagoras Nº1, redigiu uma repreensão ardente ao relatório da Grande Loja de Nova York em uma longa carta em agosto de 1859. Esta carta, preservada nos arquivos Grande Loja de Hamburgo, conta não menos do que quarenta páginas manuscritas, nas quais citações em inglês são intercaladas com respostas em alemão. [17] A Loja Pythagoras Nº1 também mobilizou aliados entre as lojas alemãs nos Estados Unidos, como o jornal maçônico “Der Triangel Oder: Akazienzweige Am Lebensbaume Ächten Maurerthums” (1855-1866), que adotou uma linguagem radical e demonstrou feroz oposição ao estado da política e da Maçonaria nos EUA na época.

Fig 2: capa do jornal germano-americano “Der Triangel Oder: Akazienzweige Am Lebensbaume Ächten Maurerthums” (1855-1856)

Conexão direta nas comunicações maçônicas transatlânticas

Em sua análise de conceitos conflitantes de universalismo na Maçonaria europeia, Stefan-Ludwig Hoffmann observou como as “metáforas tradicionais de luz e escuridão se misturaram com a nova linguagem do progresso científico e tecnológico” [18].

No caso analisado neste artigo, o cabo transatlântico ocupa um papel importante como metáfora tanto de esperança por uma melhor comunicação, quanto de decepção pela falta de melhorias nessa área. Em 1851, a Pythagoras Nº1 imaginou-se enviando “uma centelha vivificante através do Atlântico”. E também o Grão-Mestre da Grande Loja de Nova York, Robert Macoy, ofereceu uma série de resoluções programáticas, saudando o telégrafo como uma “cadeia material de concórdia [. . .] encorajando os habitantes da terra a viver juntos em paz e unidade”, levando a uma “confraternização e união das famílias”, e ‘unindo as nações da terra.’ [19] Mas, além dessa linguagem positiva, no outro lado do Atlântico, a Grande Loja de Hamburgo afirmou que o progresso tecnológico acelerando a comunicação global teria pouco valor sem promover simultaneamente a moralidade universal. Em um nível simbólico, o fio transatlântico entre a Grande Loja de Hamburgo e a Grande Loja de Nova York esquentou-se por causa de noções conflitantes de progresso. Na época, muitas Grandes Lojas da Europa continental estavam engajadas em uma batalha feroz contra inimigos conceituais, em primeiro lugar a Igreja Católica Romana. Essa batalha se intensificou na Alemanha durante a década de 1870, o chamado Kulturkampf ou “guerra cultural” entre as forças seculares progressistas e as religiosas conservadoras. Na ausência de um inimigo institucional claro, como os maçons progressistas da Igreja Católica nos Estados Unidos (apoiados em alguns casos por lojas estrangeiras como a Grande Loja de Hamburgo) dirigiram sua agitação contra o nativismo, a segregação racial e o formalismo nas Grandes Lojas americanas.

Assim, o antagonismo germano-americano da década de 1850 prenunciou outras falhas nas relações maçônicas internacionais, como a ruptura entre os maçons alemães e franceses durante a guerra de 1870-71, e a divisão entre a Grande Loja Unida da Inglaterra e a Maçonaria da Europa continental sobre a questão da liberdade de consciência em 1877. Essas áreas de conflito demonstram que qualquer ambição da Maçonaria em operar acima das diferenças nacionais como uma ‘moral internacional’ cosmopolita, implodiu quando confrontada com o realismo da política internacional.

Agradecimentos: O autor deseja registrar seus agradecimentos a Distriktsloge Hamburg e.V., que me concedeu permissão para usar seu arquivo privado na Staatsarchiv Hamburgo. Agradecimentos adicionais a Catherine Walter, Tom Savini e Bruce Renner da Biblioteca Livingstone da Grande Loja de Nova York, bem como a Thad Peterson do Deutsches Freimaurermuseum em Bayreuth e ao Dr. Leroy T. Hopkins que gentilmente compartilhou sua pesquisa sobre a Maçonaria Germano-Americana. Agradecemos também aos seguintes membros da Quatuor Coronati Lodge nº 2076: Prof Aubrey Newman e Dr. John Wade.

Notas

  • Este artigo é baseado em A. Önnerfors “Atlantic antagonism: revolution and race in German-American Masonic relations 1848-1861” in J. Jensen and J. Harland-Jacobs (Eds.), “The Fraternal Atlantic, 1770–1930”, special issue of Atlantic Studies, 16:3(2019), 384–404 and “Freedom in Fraternity? The German lodge Pythagoras No.1/86 in New York/Brooklyn and its trans-Atlantic connections in the antebellum U.S.” in F. Jacob and H. Reinalter (Eds.), Masonic Lodges and their Impact in North and South America (Würzburg: Königshausen & Neumann, 2019), 47–69.
  • Önnerfors , Freemasonry – A Very Short Introduction ( Oxford: Oxford University Press , 2017), 11–12, 59– 61.
  • Die Ger .: und Vollk .: St. Johannis Loge Pythagoras No. 1. im Aufgang von New-York an die geliebten Schwester Logen und Brüder unseres Bundes (Nova York: Teubner, 1852). Todas as traduções do alemão pelo autor deste artigo.
  • Baseei meu relato em Gary L. Heinmiller , ‘Craft Masonry in Manhattan, New York County, New York ‘, um pdf publicado online pela Onondaga & Oswego Masonic Districts Historical Societies. URL: http://www.omdhs.syracusemasons.com/content/masonic-history (acessado em 7 de dezembro de 2019).
  • ‘Arbeiten der Drey symbolischen blauen Grade der Johannis Maurerei uebersetzt aus dem Ritual des Grand Orient de France ‘, Biblioteca e Museu de Livingston, GLNY , série 2, Documentos da Loja Individual, Pitágoras No. 86 (Nº1).
  • Mitgliederverzeichnisse der Loge Pythagoras Nr. 1 em Nova York 1852-1872, “Jahresbericht 1867,” Staatsarchiv Hamburgo, 614-1 / 72_5.1.10
  • Staatsarchiv Hamburgo, 614-1 / 72_5.1.10 777 Mitgliederverzeichnisse der Loge Pythagoras Nr. 1 em Nova York 1852-1872, Jahresbericht 1868, por sua vez citando uma carta circular de 1849 .
  • Para a história, veja Carl Wiebe, Die grosse Loge von Hamburg und ihre Vorläufer (Rademacher: Hamburgo, 1905) .
  • Wiebe, Die Grosse Loge,
  • K . Hoffmann, “os primeiros vinte anos da Pythagoras Lodge Nº86, F. & AM, – 1841-1861”, Transcrições da American Lodge of Research 7 : 2 (1957), 33 – 54 .
  • Documentos a respeito da controvérsia entre as Grandes Lojas de Hamburgo e Nova York: Sobre o Jurisdição Territorial Exclusiva de Grandes Lojas: Sobre o Inquérito Sobre a Regularidade da Loja dos Mestiços. (Brooklyn: Masonic Historical Society, 1860),
  • Documentos , 2 e
  • Documentos , 4 e
  • Committee of Foreign Relations of GLNY 1858, conforme citado em Hoffmann, “The First Twenty Years”, 52.
  • «Repräsentanten der Gr L des Staates NY bei der Gr Landesloge von Sachsen (5/1 1859. Relatório do Comitê de Correspondência Estrangeira 123-136) über die Stellung der farbigen Logen und Brüder in den Verein : Staaten . ‘ StH , 614-1 / 72_5.1.10 1547, Angelegenheiten der Freimaurerlogen em Nova York, XVIII A24.
  • -L. Hoffmann, “Nationalism and the Quest for Moral Universalism: German Freemasonry, 1860-1914”, em The Mechanics of Internationalism: Culture, Society and Politics from the 1840 to the First World War , ed. por MH Geyer e J. Paulmann . (Oxford: Oxford University Press, 2001), 271 .
  • Transcrições da Grande Loja da Mais Antiga e Honorável Fraternidade do Livre e Aceito Maçons do Estado de Nova York (1859) (New York: Macoy , 1859) , 4-5.

Sobre o Tradutor

Marcos Vinicius Oliveira é Mestre Instalado, residindo em Portugal. É grau 9 do REAA e Companheiro do Sagrado Arco Real. É bacharel nas seguintes áreas: Pedagogia, Teologia e Psicoterapia. Foi fundador do Colégio Maçônico do GOB em Sergipe e é Membro Correspondente da Quatuor Coronati Lodge sob registro nº 01145037.

One thought on “As Fronteiras do Cosmopolitismo Maçônico

  • 14 de fevereiro de 2021 em 7:03 AM
    Permalink

    Agradeço ao Ir. Andreas Önnerfors – Venerável Mestre (WM) da Quatuor Coronati Lodge 2076 – GLUI, pela confiança em nos permitir traduzir e divulgar esse artigo inédito e também ao Ir. Luciano Rodrigues por abrir espaço nesse conceituado espaço para publicá-lo.

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