O Grão-Mestre Duque de Sussex (1813-1843) e a descristianização dos rituais ingleses
O Duque de Sussex é uma figura importante na história da Maçonaria Inglesa. Ele teve o maior domínio do século XIX e, acima de tudo, ao contrário de seus sucessores que reinaram sobre a instituição sem governá-lo, ele teve uma ação pessoal importante que forjou a Grande Loja Unida da Inglaterra como a conhecemos hoje.
Para conhecer esse personagem e seu papel, primeiro analisaremos a vida surpreendente do Duque de Sussex, o que explica, até certo ponto, sua atitude como Grande Mestre, então estudaremos o papel que ele teve na união da Maçonaria Inglesa e como ele marcou isso. Isso nos permitirá compreender melhor a natureza da Maçonaria inglesa e remover alguns equívocos e mal-entendidos.
Sexto filho do Rei George III, Augusto Frederico nasceu no Palácio de Buckingham em 27 de janeiro de 1773. Nascido em uma dinastia de origem alemã, a Hannover, é uma das primeiras gerações de príncipes com a cultura realmente inglesa. Uma frágil criança que sofria de asma, onde o clima era desfavorável, de uma Londres cheia de fumaça, nevoeiro e muita fuligem das chaminés das casas, ele foi enviado ao continente onde em breve levará uma vida de diletante (aquele que somente se ocupa por prazer e não por obrigação), embora financeiramente limitada. Ele morou na Itália, onde conheceu uma garota inglesa, Lady Augusta Murray, a segunda filha do 4° Conde de Dunmore, com quem ele se casa, em 1793, sem a autorização de seu pai, quase que secretamente, em Roma. Informado desta violação das regras reais em assuntos matrimoniais, o Rei informa que ele vai quebrar esse casamento se seu filho colocar os pés na Inglaterra. Enquanto isso, Augusto Federico vive na Holanda austríaca e lá ele é iniciado na maçonaria, no final do século XVIII, em um Rito Escocês próximo a Estrita Observância Templária. Ele informará mais tarde que esta iniciação foi um dos momentos mais importantes em sua vida.
No início do século XIX, ele decidiu voltar para a Inglaterra e seu casamento foi formalmente anulado em 1801. Seus dois filhos e sua ex-mulher receberam uma remuneração sob a forma de pensões e títulos nobres. Ele se casará uma segunda vez e ainda sem a permissão real, mas será sem consequências negativas, seu irmão sendo um regente, acabará com sua carreira suave e silenciosa, amada e apreciada por sua tia, a Rainha Victoria. Sua vida privada nos mostra que esse personagem incrível não hesitava em arriscar e romper certas regras.
Na época do retorno do Duque de Sussex à Inglaterra, a Maçonaria inglesa passou por um período difícil. Por mais de 40 anos, foi dividida entre “Antigos” e “Modernos”. Em 1799, ela ficou abalada quando o parlamento, em luta com a França, considerou incluir a maçonaria nas sociedades secretas proibidas, através da Unlawful Societies Act (Lei das Sociedades Ilegais). Este episódio irritante ainda teve um efeito positivo. Ele havia demonstrado que, diante da adversidade, as duas Grandes Lojas rivais poderiam se unir para defender os interesses de uma maçonaria sempre respeitosa das leis, da religião e da monarquia. Foi um primeiro passo na estrada para a união, especialmente porque, há muitos anos, mais e mais irmãos, tanto “modernos”, quanto “antigos”, tendiam a praticar a mesma maçonaria. Em 1809, a chamada Loja de Promulgação foi encarregada de preparar a união definitiva. Com o objetivo de “restaurar os antigos marcos”: a ordem das Palavras B e J, a instalação do Venerável Mestre da Loja e a prática do grau do Santo Arco Real de Jerusalém.
Este trabalho foi facilitado pelos ocupantes dos cargos de Grão-Mestre das duas Grandes Lojas, o Duque de Sussex (para os “Modernos”) e um de seus irmãos (para os “Antigos”). Um irmão que teve uma vasta carreira maçônica, semelhante ao Duque de Sussex, enquanto outro irmão, o Príncipe de Gales, Príncipe Regente por causa da incapacidade de George III, era o “protetor da Maçonaria”, um título ainda detido pelos soberanos ingleses. Todos esses fatores favoráveis não foram suficientes para remover os últimos obstáculos (especialmente o lugar do Arco Real no novo sistema), o que ainda impediu que a união fosse finalmente selada em 27 de dezembro de 1813 para ver, sob proposta de seu irmão, o Duque de Sussex se tornar o 1º Grão-Mestre da Grande Loja Unida da Inglaterra.
Mas foi necessário, após a união formal, construir uma nova Maçonaria. Acabamos de ver que a questão do Arco Real foi objeto de negociações até o último momento. O historiador John Benton mostrou que um dos documentos originais assinados no momento da União tinha sido arranhado sobre o status do Arco Real. Parece que uma primeira elaboração fez um 4º grau, enquanto a elaboração finalmente mantida, define Maçonaria “pura e antiga” como um sistema de 3 graus e apenas 3, incluindo o Arco Real. Muito tem sido dito sobre esta fórmula complicada, mas provavelmente, tenha sido a expressão das dificuldades dos últimos minutos durante a negociação final, antes da assinatura de união.
Além disso, havia a questão de escrever os novos rituais. Era realmente necessário conciliar as tradições dos “Antigos” e “Modernos”, quanto ao planejamento da loja, sua estrutura, seus símbolos, etc. Para fazer isso, uma loja chamada “Reconciliação” foi fundada após a União e funcionou desde o final de 1813 até 1816. Esta loja compôs assim um ritual e, através de emissários que enviou por todo o país, fez muitas demonstrações para propagar, em um momento em que não só a impressão desses textos era proibida – mesmo que fosse breve – mas também onde as distâncias eram mais longas e difíceis do que hoje, e assim unir, realmente desta vez, a nova Grande Loja.
O Duque de Sussex estava pessoalmente envolvido no trabalho da Loja de Reconciliação e trabalhou arduamente sobre o que chamava de “descristianização” dos rituais.
O que significa esta descristianização dos rituais?
Sabemos que a Maçonaria nasceu em uma terra, numa cultura e espiritualidade moldada pelo cristianismo. Sabemos que seus símbolos mais antigos são fundamentalmente cristãos. No entanto, já em 1730, a Maçonaria inglesa começou a receber judeus em suas fileiras e isso continuou durante todo o século XVIII, de modo que, no início do século XIX, constituíam um grande número. Ao mesmo tempo, o Duque de Sussex, teve uma educação cristã, mas profundamente marcada por sua juventude e vida relativamente desocupada, que formou seu forte caráter e sua personalidade atípica. Ele esteve interessado no judaísmo, aprendeu o hebraico, leu as Bíblias e acima de tudo, foi o primeiro príncipe de sangue real a entrar na Grande Sinagoga de Londres. Ele queria ajudar a completar a integração dos judeus na sociedade inglesa e, além disso, o reino logo teve um primeiro ministro de origem judaica. É, portanto, nesse espírito de integração dos não cristãos na Grande Loja que devemos entender a “descristianização” desejada pelo Duque de Sussex e não em qualquer “laicização” na moda francesa do final do século XIX, fundamentalmente antirreligiosa. Pelo contrário, a Maçonaria querida por Sussex é e permanece profundamente religiosa, mas uma religião não limitada a uma “igreja”, no sentido mais amplo possível, e aberta a todos os que se referem ao que os cristãos chamam de Antigo Testamento – isto é, judeus, cristãos (qualquer que seja sua “denominação” ou “igreja”) e muçulmanos. Pesquisadores demonstraram há muito tempo que esta política de ”descristianização” se enquadra perfeitamente na perspectiva geopolítica do Império Britânico na época, o que faz da Maçonaria um possível instrumento para integração das elites locais conquistadas, incluindo nobres que vinham de tradições diferentes das que seguiam o Antigo Testamento.
Mas para finalmente estabelecer seu trabalho, Sussex entendeu que era necessário cuidar não apenas da “Maçonaria” pura e antiga definida em 3 graus e apenas 3, incluindo o Arco Real, que os ingleses chamam de “Craft” (o Ofício), mas também o que a tradição francesa chama de “Altos Graus” ou, na Inglaterra, os “Graus laterais”. O que não foi esquecido durante a união, como o famoso artigo II os mencionou expressamente. Mas como uma cristianização seria possível para os altos graus tendo como o “Antigo Testamento” como base das três religiões monoteístas mencionados acima, uma vez que uma descristianização dos dois sistemas principais de “altos graus” praticados parecia impossível aos olhos ingleses: Cavaleiros Templários e Rito Antigo e Aceito. Sussex compreendeu bem o problema, sem formalmente proibi-los, ele fez tudo o que pôde para evitar qualquer atividade destas organizações. E, novamente, no final de sua carreira no início da década de 1840, ele se opôs aos famosos Maçons que defendiam esses Graus Laterais, o Dr. Robert Crucefix e George Oliver. Somente após a morte do Duque em 1843, que o Supremo Conselho da Inglaterra retomou a atividade em 1846. Este Supremo Conselho ainda é cristão hoje e exige de seus membros um juramento de fé trinitário cristão. Mais tarde, reaparecerão os outros “Graus Laterais”, a Marca em 1856, os Cavaleiros Templários, a ordem da Cruz Vermelha de Constantino (1865), etc.
Entretanto, Sussex alcançou seu objetivo de fornecer uma base cristã “não denominacional” para a Grande Loja Unida da Inglaterra, uma base sólida sobre a qual mais de uma centena de graus floresceram, a grande maioria dos quais são cristãos. Então, na Inglaterra, temos uma Maçonaria de dois patamares, que se tornou enraizada em um fundamento aparentemente inabalável, no plano interno, um elemento constituinte da sociedade inglesa com um funcionamento institucional à imagem do sistema político do reino e, externamente, um padrão de Maçonaria internacional.
Notas
1 – Entre os muitos exemplos de descristianização dos rituais de Maçonaria inglesa, escolhi apenas um, o símbolo do ponto dentro do círculo cercado por 2 linhas paralelas. Ele tradicionalmente representa os 2 Santos de nome João. Hoje também representa Moisés e Salomão.
2 – A descristianização não afetou os maçons irlandeses, escoceses e americanos, pois estes utilizam rituais anteriores as mudanças realizadas pelo Duque de Sussex.
3 – O Duque fez o possível para impedir que o Rito Antigo e Aceito ou Rito Escocês Antigo e Aceito, fosse praticado na Inglaterra e em qualquer outro país onde a Maçonaria funcionasse sobre carta constitutiva inglesa, podendo o maçom praticante, ser excluído da ordem ou a potência do país, considerado irregular.
Bibliografia
Esta é uma adaptação feita, a partir da tradução do texto “A virada histórica da maçonaria inglesa” de Roger Dachez.
Luciano R. Rodrigues (O Prumo de Hiram)